José Roberto Sarsano

 

Professor & Coach, é Administrador de formação e Músico e Educador por vocação, 

com vivências memoráveis, apaixonado pela Educação.

 

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Elis: O ser humano por trás do mito!

A última vez que vi Elis Regina pessoalmente, foi no show Trem Azul em São Paulo, outubro de 1981. Fui ao evento de forma absolutamente circunstancial quando era diretor de uma associação de usuários de computadores. Assim, depois de muitos anos desde a última vez que estivemos juntos na sua casa na Av. Niemayer no RJ, o destino me colocou frente a frente com ela, na primeira fila do auditório do Palácio das Convenções. Emocionado, assisti ao espetáculo sem saber que essa seria a última vez que a veria.

 

O show O Trem Azul tem um significado especial para mim, bem como para cada um de nós com nossos motivos particulares. Certamente tinha para Elis. Como todo gênio artístico, ela muitas vezes expressava nas suas interpretações o que se passava no seu universo interior, o que nem sempre era compreensível a todos, mas paradoxalmente tornavam únicas e maravilhosas as suas interpretações. Elis não escolhia as músicas por acaso. Ela "garimpava" o seu repertório! Tudo o que ela decidia cantar tinha algum sentido, tanto na sua vida pessoal e artística, quanto no ambiente (social, político, etc.) em que estava inserida.

Elis começou O Trem Azul declamando o texto de abertura, escrito por Fernando Faro, que é de arrepiar, e refletia o conflito que ela tinha entre ser uma cantora no palco e na televisão (ela obviamente preferia o palco...), mas que tinha que se render a força da televisão. Ela expressou claramente esse conflito em seu disco Elis 66, que tive o privilégio de gravar com ela como baterista do Bossa Jazz Trio. O texto:

"Agora o braço não é mais o braço erguido num grito de gol. Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espelhado e brilhante. E todas as figuras são assim: desenhos, agrupamentos de pontos de partículas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais. E assim - dizem - recontam a vida. Agora retiram de mim a cobertura da carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e aí estou, pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela."

 

Nesta apresentação, por exemplo, ao interpretar a canção Se eu quiser falar com Deus, Elis cantava o fim de um ciclo, exagerava na gesticulação e gritava: "tenho que dizer adeus... dar as costas... caminhar decidido pela estrada, que ao final vai dar em nada... NADA, NADA, NADA... do que eu pensava encontrar...". Elis praticamente gritava, expressava a sua dor, a raiva que sentia, sua frustração, e a dificuldade em lidar com a fase que vivia naquele momento de sua vida.

Já quando cantava a música Trem Azul, Elis celebrava o início de um novo ciclo: "você pega o Trem Azul, o sol na cabeça, você (o público que era sua vida e ela amava) na cabeça", e expressava através de cada poro do seu corpo, com seu apuradíssimo senso rítmico, a tendência musical que adotara! Fez um dueto com a guitarra de Natan Marques que era de arrepiar! Entregava flores para seus músicos, liberava a criança que ela tanto protegia, e se comportava como tal! Pulava, corria pelo palco, atirava flores para as pessoas e levava o público ao delírio! Pura energia positiva! Possivelmente estava um pouco exagerado, mas tinha que ser assim, era a sua afirmação no novo caminho que estava começando a trilhar!

Ao final da apresentação, de pé, bem na frente de Elis, a aplaudi emocionado juntamente com os demais diretores que insistiam para que eu fosse conversar com ela no camarim. Por razões que eu nunca consegui explicar bem, não fui! A vida seguiu, e, pouco tempo depois, em 19 de janeiro de 1982, recebi a notícia de sua morte. Era difícil acreditar. Voltei no tempo, recordei a Elis com quem eu tinha convivido e o que realizamos juntos... Lembrei-me da última vez que a vi no show O Trem Azul. Meu Deus - pensei - por que não falei com ela? Fiquei desconcertado!

Inconformado por não ter conversado com ela quando o destino me deu essa última oportunidade, durante muito tempo fiquei pensando por que aquilo tinha acontecido. Por que Elis tinha partido da forma que partiu, e formei uma percepção, a qual gostaria de compartilhar com vocês. É apenas uma percepção, até com alguma ficção, mas totalmente de acordo com o momento e a personalidade de Elis.

Ao formar essa percepção, foi impossível não ser influenciado pela minha convivência com ela. E fizeram parte dessa convivência a história e reflexões contidas no livro O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. Elis me deu este livro de presente para que através da mão do pequeno príncipe eu a compreendesse em sua essência. Recordo Elis como se fosse o pequeno príncipe. Assim, por esta mesma mão, incluo neste ensaio, trechos do livro no momento em que o príncipe se preparava para voltar para sua estrela. Minha percepção:


Naquela noite, quando recolheu-se ao seu quarto, os pensamentos de Elis provavelmente se pareciam mais a um redemoinho, tantas as mudanças em sua vida depois de uma longa fase de estabilidade artística e afetiva. Mudou-se da casa no campo que tanto sonhou; separou-se do marido que lhe deu amor, filhos e estabilidade afetiva; separou-se do músico, arranjador e maestro que a entendia como nenhum outro e com o qual atingiu a perfeição como cantora. Terminava um ciclo e as antigas estruturas nas quais tinha vivido nos últimos anos pareciam dissolver-se. Desiludida, tinha trocado de gravadora e buscava afirmar-se em uma nova fase profissional inaugurada com o show O Trem Azul, onde na plenitude da sua vida artística e mostrando felicidade, paradoxalmente declarava no texto de abertura do show, de forma metafórica e triste, que "agora sou uma estrela".


Poucos meses, tantos os desafios, incluindo a consciência daqueles que se seguiriam ao auge da sua carreira e do declínio biológico inevitável... Elis vivenciava os riscos e as oportunidades potenciais que se apresentavam na mudança dos ciclos daquela fase de sua vida. Sentia-se angustiada com a sua condição pessoal, com a do ser humano no planeta, com as questões ecológicas, políticas e sociais. Elis sentia-se cansada aos 36 anos de idade e uma carreira de 22 anos doando-se com sua arte ininterruptamente.

Madura, porém sempre carente e insegura, como a criança que tanto preservava nela, vinha reagindo com a intensidade de sempre às mudanças e tentando reestruturar sua vida pessoal e artística, e para isso procurava cercar-se de pessoas e coisas - algumas boas outras não tão boas - que lhe dessem a sensação de segurança, que especialmente naquele momento lhe faltava. As pessoas que estavam com ela naquela noite, se despediram, e voltaram para suas casas.

 

"[...] Eu também volto hoje para casa, sussurrou o pequeno príncipe... Depois tristonho disse: É bem mais longe... Bem mais difícil... Eu percebia claramente que algo extraordinário se passava. Apertava-o nos braços como se fosse uma criancinha; mas tinha a impressão de que ele ia deslizando num abismo, sem que eu nada pudesse fazer para detê-lo. O sentimento do irremediável me fez gelar de novo. E eu compreendi que não poderia suportar a idéia de nunca mais escutar esse riso..."

Elis trancou a porta e na solidão que lhe era característica, retirou a máscara de felicidade que estava usando, encarou a si mesma com seus erros e acertos, e extravasou toda a angústia contida, uma overdose de angústia... Tentou em vão concentrar-se na escolha de novas músicas para seu repertório... Com a aguda consciência do momento da sua vida e das dores e angustias do mundo, Elis enfraqueceu, e, como já vinha fazendo há alguns meses, buscou a sensação de segurança para aplacar a dor existencial que sentia com o que, infelizmente, estava ao seu alcance naquele momento... Não foi um ato compulsivo e nem a busca de algum "barato" criativo... Elis morreu de angústia. Sua morte não foi um evento aleatório no tempo, mas sim a culminação de um processo.

"[...] Naquela noite, não o vi partir. Saiu sem fazer barulho. Quando consegui alcançá-lo, ele caminhava decidido, num passo rápido. Disse-me apenas: Ah! Aí estás... Fizeste mal, disse o pequeno príncipe. Tu sofrerás. Eu parecerei estar morto e isso não será verdade... Eu me calara. Tu compreendes. É muito longe. Eu não posso carregar esse corpo. É muito pesado. E eu continuava calado. Mas será como uma velha casca abandonada, disse o pequeno príncipe. Uma casca de arvore não é triste..."

 

O dia já havia clareado quando ela se foi... Tomou café da manhã com o filho João Marcelo, falou com o namorado Samuel, mas ninguém a viu partir, se foi sem fazer barulho, voltou para sua estrela deixando seu corpo com a fisionomia serena de quem finalmente soube que já tinha cumprido sua missão. Elis sabia que pela mão do Pequeno Príncipe eu a veria como única, que eu veria sua essência..."[...] Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos..." e que "[...] Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas..."